Dra. Erica Maia Alvarez

O fim das grandes carreiras: Medicina, Direito e Engenharia em queda livre

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Durante séculos, engenharia, direito e medicina foram os três grandes pilares das carreiras de prestígio. Não eram apenas profissões — eram símbolos de status, segurança financeira e reconhecimento social. Representavam o caminho mais sólido para ascensão individual e familiar.

Esse foi o Rise: cursos seletivos, formação rigorosa, carreiras robustas e promissoras que garantiam não apenas renda, mas respeito. A promessa era simples e poderosa: forme-se em uma dessas áreas e você terá um futuro garantido.

Com o tempo, porém, cada uma dessas áreas começou a enfrentar a sua queda.

Engenharia viveu sua expansão massiva primeiro. No Brasil, o boom desenvolvimentista criou uma demanda voraz por engenheiros que desfrutaram, por décadas, de salários robustos e prestígio social. A resposta foi previsível: proliferação de escolas de qualidade desigual. O mercado tornou-se incapaz de absorver todos os formados. A promessa de estabilidade se transformou em frustração, com milhares de engenheiros migrando para áreas completamente distintas de sua formação. O que era elite tornou-se commodity.

Direito seguiu o mesmo roteiro: explosão no número de faculdades, cursos de baixa qualidade e uma profissão cada vez mais saturada. Milhares de bacharéis disputando migalhas de mercado, muitos jamais passando no exame da OAB, outros atuando longe dos tribunais. O glamour evaporou, os salários despencaram, e a advocacia de prestígio tornou-se privilégio de pouquíssimos.

E a medicina resistiu. Por muito tempo, foi o último “lugar seguro”. Proteções regulatórias mais rígidas, a natureza crítica da profissão e o investimento necessário para abrir cursos médicos criaram uma barreira temporária contra a saturação completa. Era o curso ainda visto como inalcançável, o que garantia, quase por si só, uma carreira estável e financeiramente vantajosa.

Mas o que estamos assistindo hoje é a medicina entrando, também, em sua trajetória de queda:

Um boom de faculdades de qualidade duvidosa, formando profissionais sem a mesma densidade técnica e cultural que antes marcava a profissão.

O aumento exponencial de médicos sem, no entanto, resolver os vazios assistenciais nas regiões mais vulneráveis. O problema nunca foi de quantidade de médicos, mas de gestão pública.

E a ressurreição dos cursos de bacharelado em ciências médicas, muitas vezes percebidos não como formação científica legítima, mas como possível atalho para a medicina via transferências de curso.

Se engenharia e direito já haviam vivido sua decadência, a medicina era a última remanescente dos três grandes pilares. Hoje, também ela se vê arrastada para o mesmo destino. O Rise and Fall se completa.

É revelador observar que, enquanto medicina, direito e engenharia completam seu ciclo de Rise and Fall, a tecnologia nunca precisou passar por esse modelo tradicional.

Carreiras em tech — desenvolvimento de software, ciência de dados, design de produto, gestão de tecnologia — nunca dependeram do prestígio de um diploma específico. Desde o início, a área de tecnologia operou sob uma lógica diferente: o que importa é o que você sabe fazer, não onde você se formou. Bootcamps, cursos online, autodidatismo e portfólios de projetos sempre tiveram mais peso que diplomas universitários.

Enquanto medicina, direito e engenharia construíram barreiras de entrada altíssimas (vestibulares competitivos, anos de formação, conselhos profissionais), a tecnologia democratizou o acesso. Qualquer pessoa com um computador e internet pode aprender a programar (não que tecnologia se resuma a programar, mas deu pra pegar a ideia). O “credencialismo” nunca foi o portão de entrada.

Mas — e aqui está o ponto crucial — isso não significa que tech seja mais fácil. Muito pelo contrário. A área de tecnologia sempre exigiu exatamente o que agora se tornou necessário para todas as profissões: aprendizado contínuo, adaptação constante, múltiplas habilidades (técnica + comunicação + negócios), capacidade de se reinventar a cada nova onda tecnológica.

A diferença? A tecnologia já nasceu na nova era. Nunca teve a ilusão de segurança eterna que medicina, direito e engenharia prometiam. Sempre foi transparente sobre sua volatilidade, suas mudanças rápidas, sua exigência implacável de evolução constante.

Talvez por isso a tecnologia não precise “cair” — porque nunca prometeu uma subida garantida baseada apenas em um diploma. O modelo de carreira em tech sempre foi o que agora se torna universal: fluidez, hibridismo, responsabilidade individual pela própria trajetória.

Medicina, direito e engenharia ruíram porque prometiam estabilidade e não conseguiram cumprir. A tecnologia nunca prometeu estabilidade — sua força está justamente em saber acompanhar a instabilidade permanente.

Mas aqui reside um fenômeno intrigante: por que as pessoas ainda querem desesperadamente ser médicos?

“Ser médico é ganhar bem” — esse mantra é um remanescente fossilizado de um ideal antigo, o mesmo que existia para engenheiros e advogados. Grande parte da população ainda está presa nesse conceito defasado. Talvez isso explique o paradoxo: as pessoas parecem odiar médicos, sentem ranço da profissão, como se houvesse uma vantagem injusta, um privilégio imerecido dado de presente. Mas ao mesmo tempo, querem ser médicos.

Essa crença alimenta a corrida desenfreada aos cursos de medicina, muitas vezes mais por status e projeção fantasiosa de sucesso do que por vocação genuína. E essa frustração coletiva alimentou exatamente o furor que levou a medicina ao seu destino atual — a saturação, o sucateamento, impulsionados por interesses de mercado e demandas populares distorcidas.

É curioso: se o objetivo fosse apenas o ganho financeiro, por que não optar por ser juiz? Ou político? Influenciador digital? Ou líder de uma grande empresa?

A resposta – pra mim – está na percepção de dificuldade de acesso. Para a política ou magistratura, e também pra liderança, existem múltiplas camadas de complexidade, trabalho inicial excessivo, capital social necessário. Para ser influenciador digital, você precisa ser minimamente interessante, um excelente comunicador, ter carisma magnético — enfim, um conjunto de talentos inatos ou muito desenvolvidos.

A medicina sempre pareceu o caminho mais fácil entre as carreiras de alto prestígio. A grande barreira era, apenas, a entrada no curso. Uma vez dentro, você estuda, faz o que precisa fazer, nada muito além disso. Não exige carisma especial, beleza, capital social prévio ou talento comunicativo excepcional. E justamente essa previsibilidade alimentava a fantasia de segurança — ainda que ela esteja ruindo diante de nossos olhos.

Existe até uma atuação chamada corretor de estudante de medicina. Um intermediário comissionado que atua captando estudantes que passaram em múltiplas faculdades particulares de medicina e tentando convencê-los a se matricular em uma faculdade específica (provavelmente aquela que paga a melhor comissão para ele).

E agora, com o excedente de cursos, ficando cada vez mais fácil entrar, o ciclo se fecha definitivamente.

Esse movimento não representa apenas a queda de cursos específicos, mas o fim de um modelo de carreira baseado na ideia de que o diploma bastava.

Antes, formar-se em medicina, engenharia ou direito significava, quase automaticamente, um futuro sólido. Você escolhia uma carreira aos 17 anos, se formava, se especializava dentro daquela área e se aposentava como especialista. Esse modelo linear morreu.

Na era atual, formar-se é apenas o começo. Para sobreviver e prosperar, não basta o diploma. É preciso:

  • Conhecimento técnico da área escolhida
  • Saber se posicionar, construir marca pessoal, vender suas ideias
  • Dominar ferramentas e contextos que transcendem sua formação original
  • Entender os marcos legais e éticos que cercam sua atuação
  • Reaprender, mudar de trajetória, conectar diferentes campos de saber
  • Construir redes, liderar sem autoridade formal, negociar e, mais que tudo, precisa de resiliência.

O diploma não é mais um destino. É apenas um ponto de partida, uma plataforma inicial para construir algo muito maior e mais complexo.

Existe uma leitura otimista para essa crise: será que o fim do modelo antigo representa uma oportunidade para que mais pessoas se encontrem verdadeiramente em suas carreiras?

Quando as trajetórias eram rígidas e predefinidas, quantas pessoas seguiram caminhos que não faziam sentido para elas, apenas pela promessa de estabilidade? Quantos engenheiros infelizes, advogados frustrados, médicos desiludidos foram produzidos por esse sistema de trilhos fixos?

Talvez a fluidez forçada da nova era — onde seu diploma não define seu destino — permita que as pessoas explorem, experimentem e eventualmente construam carreiras que realmente refletem seus talentos, interesses e valores.

Mas essa liberdade vem com um preço alto: a responsabilidade total pela própria trajetória. Não há mais trilhos seguros para seguir. Cada profissional precisa ser o arquiteto da própria carreira, constantemente reconstruindo e reinventando seu caminho. É simultaneamente libertador e aterrorizante.

O Fall da medicina, precedido pelo colapso da engenharia e do direito, marca o fim definitivo de uma era de carreiras garantidas e trajetórias lineares. Não existem mais grandes cursos a cair. Chegamos ao marco histórico do fim das “grandes carreiras seculares”, blindadas..

A nova era exige hibridismo e transversalidade. Carreiras sólidas não serão construídas apenas em torno de uma especialidade técnica, mas da capacidade de integrar múltiplos saberes: técnica, comunicação, tecnologia, gestão, criatividade, resiliência.

Estamos saindo da era dos diplomas para entrar na era das competências múltiplas e trajetórias singulares. O que importa agora não é mais o curso que você escolheu aos 17 anos, mas quem você se torna ao longo de décadas de aprendizado contínuo e reinvenção constante.

Se não existem mais grandes cursos de prestígio a cair, onde se apoiar pra ascensão social e status? Qual será o novo critério de sucesso nesse sentido? O que realmente fará diferença numa era em que todos concorrem com todos e onde o diploma é apenas o início?

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