
A máquina perfeita e o esgotamento no trabalho
Você se lembra do Ciclo de Carnot? É uma máquina perfeita que transforma 100% da energia em trabalho, sem nenhuma perda ou desperdício.
A Máquina de Carnot é uma ideia teórica criada por Sadi Carnot, um físico francês do século XIX. Ele queria entender até onde podemos chegar na eficiência de transformar energia térmica em trabalho. Este ciclo contínuo é admirado por sua eficiência teórica máxima e mostra que, em condições ideais, é possível atingir a conversão perfeita sem desperdícios.
Agora imagine se pudéssemos aplicar os princípios do Ciclo de Carnot ao rendimento no trabalho humano. Trabalhadores operando em ciclos perfeitos, sem perda de energia, mantendo a produtividade máxima o tempo todo. No entanto, sabemos que humanos, como somos, precisamos de pausas e temos variações de ritmo (que certamente impactam o nosso rendimento no trabalho).
Diferente da Máquina de Carnot, que pode operar indefinidamente sem perda de eficiência, os seres humanos têm limites físicos e emocionais. Ignorar essas necessidades pode levar a um desgaste significativo, afetando não apenas o desempenho individual, mas também a saúde coletiva dentro de uma organização.
Pegando de exemplo os influenciadores digitais, sabemos que já existem influenciadores que são personas 100% criadas por inteligência artificial. Não cansam, não contrariam, trabalham 24/7, sem risco de adoecer e sem risco de processo trabalhista! Essas entidades digitais são programadas para operar em um nível constante de alta eficiência, sem as limitações humanas.
Para as personas de inteligência humana mesmo, quando a pressão para manter o rendimento elevado se torna incessante, o resultado pode ser exaustão física e mental.
Os sinais de esgotamento incluem cansaço extremo, desmotivação, irritabilidade e até mesmo problemas de saúde física. Essa busca incessante pela eficiência máxima, sem considerar as necessidades humanas básicas, pode levar a uma diminuição da produtividade a longo prazo, além de impactar negativamente o clima organizacional e a satisfação no trabalho.
No mundo real, o rendimento humano é uma questão de equilíbrio, não de perfeição.
Os princípios que sabidamente têm maior impacto na saúde mental do trabalhador são:
- os sensos de justiça e pertencimento,
- a sensação de recompensa adequada (isso pode ser com salário, com reconhecimento, com oportunidade de carreira),
- autonomia e
- adequação da carga de trabalho.
Outra coisa que importa aos humanos – mas não às máquinas – são os valores; a necessidade de pertencimento é primordial para um ser tão social como nós, mas não basta só pertencer, o lugar aonde você pertence também faz diferença.
A seara do burnout
O burnout é reconhecido como uma condição de saúde derivada do estresse crônico não tratado, exclusivamente relacionado ao trabalho. É importante entender que estamos falando de um estresse crônico, ou seja, não é algo que ocorre de um dia para o outro, nem devido a um evento específico, mas sim um processo cumulativo ao longo de semanas ou meses.
Para o diagnóstico de burnout, três grupos de sintomas são necessários:
1. Exaustão: O paciente sente um esgotamento total, uma perda de energia.
2. Desconexão com o trabalho: Há um desengajamento, uma perda do envolvimento emocional com o trabalho, muitas vezes acompanhado por sentimentos de cinismo e ironia.
3. Sensação de falta de realização: O paciente sente que não consegue se realizar no trabalho, um conflito entre as expectativas pessoais e o que é oferecido pelo ambiente de trabalho.
Se eu tiver esses três sintomas, eu tenho burnout?
Não necessariamente. Vamos entender.
Tem duas coisas a mais que precisam ser levadas em consideração para se caracterizar o burnout:
- ele é um diagnóstico de exclusão
- ele é um diagnóstico ocupacional
Isso significa que existe uma jornada de pelo menos 3 etapas para se chegar ao diagnóstico de burnout corretamente:
1. Primeiramente identificar clinicamente os 3 grupos de sintomas mencionados acima (exaustão, desconexão com o trabalho e sensação de falta de realização).
Ou seja, precisa “parecer burnout”.
2. Em segundo lugar, é necessário EXCLUIR qualquer outro diagnóstico médico que possa justificar esses sintomas (como depressão, ansiedade, transtorno de adaptação entre outros).
Isto é: por definição, só será burnout se não for outra doença.
3. E, por último, é primordial estabelecer o nexo causal entre o trabalho e os sintomas, o que significa que deve haver uma análise do ambiente de trabalho, da história ocupacional do paciente e da correlação entre os dois, para ser possível confirmar que o estresse é realmente decorrente do trabalho.
Na prática, isso torna o diagnóstico prerrogativa do médico do trabalho, ainda que o CFM regulamente que o psiquiatra também pode fazê-lo se puder caracterizar o nexo causal na história ocupacional de forma adequada e segura (vide CFM Nº 2297/2021).
Essa mudança no reconhecimento do burnout como uma doença do trabalho foi oficializada na atualização da Classificação Internacional de Doenças (CID-11) em 2022.
E como isso impacta as empresas?
A saúde mental no ambiente de trabalho é crucial para o bem-estar dos colaboradores e o sucesso das empresas. O adoecimento mental dos colaboradores pode levar a vários problemas, como aumento da rotatividade de funcionários, absenteísmo e afastamentos, queda de produtividade, perda de confiança na liderança e impactos negativos na cultura e na credibilidade da empresa. Esses fatores podem resultar em dificuldades para reter talentos e comprometer a reputação da empresa no mercado.
Colaboradores que não conseguem se concentrar ou que estão sobrecarregados são mais suscetíveis a cometer erros, que podem levar a acidentes, alguns dos quais podem ser graves ou até fatais. Esse cenário também tem implicações financeiras para as empresas, como aumento do Fator Acidentário de Prevenção (FAP), que pode elevar os custos relacionados à folha de pagamento.
O que fazer diante desse cenário?
O primeiro passo é reconhecer que o problema existe e que ele precisa ser abordado. Existem três momentos diferentes de cuidado que as empresas podem considerar:
1. Situação de adoecimento: Para empresas com vários colaboradores afastados ou retornando de afastamento, é necessário implementar ações para cuidar dessas pessoas e facilitar sua reintegração.
2. Promoção da saúde: Para empresas que percebem a necessidade de promover bem-estar entre os colaboradores, mesmo que nem todos estejam adoecidos, é importante implementar ações de promoção de saúde para evitar que surjam casos e a situação se agrave.
3. Prevenção: Para empresas que acreditam que tudo está bem, é uma oportunidade de realizar ações preventivas para manter a saúde e o bem-estar dos colaboradores.
Para evitar o desgaste e promover um ambiente de trabalho saudável, é essencial que as empresas implementem práticas que valorizem o bem-estar dos colaboradores, oferecendo suporte emocional e ações de bem bem-estar. Políticas de trabalho flexíveis, oportunidades de desenvolvimento profissional e um ambiente de apoio podem contribuir significativamente para a manutenção de um alto nível de produtividade sem comprometer a saúde dos colaboradores.
Ao entender e respeitar as diferenças entre máquinas e humanos, podemos criar ambientes de trabalho onde a produtividade e o bem-estar coexistam harmoniosamente e promover uma cultura de saúde e sustentabilidade no trabalho. É vital reconhecer que o verdadeiro rendimento sustentável não é alcançado através da exaustão, mas sim através de práticas que valorizem o equilíbrio entre o trabalho e a vida pessoal, incentivando um ambiente onde os colaboradores possam prosperar tanto profissionalmente quanto pessoalmente.
Entre em contato com a Dra. Erica Maia Alvarez pelo email contato@ericamaiaalvarez.com.br ou por Whatsapp.
Tive um episódio de burnout há 6 anos, mas na época não se falava nisso. Após anos fui saber que era isso e como fez falta um diagnóstico na época.
Com conhecimento, a ciência vai evoluindo e colocando nome às coisas. Isso é fundamental para entendermos essas condições e construirmos formas de ajudar as pessoas!